O Eu da Filipa

Nunca mais vou decurar o fim de ano. Nunca, nunca, nunca mais. Claro que isto é válido enquanto me lembrar. Mas então ontem, o dia foi bastante razoável mas, cheguei a casa e... Enquanto arrumava as compras parti um ovo no chão, Deixei cair um pacote de açucar mascavado, que é mais grosso mas espalha-se na mesma, O aspirador pequeno sugou para a frente e empurrou para trás Adormeci no sofá e não vi quase nada da série que estava a ver com o Bruno Acordei com um sono de morte. Temos uma festa na segunda-feira e ainda não temos máscara.

Ando com muita vontade de fazer um piquenique. Ou seja, de ir almoçar fora...

Hoje de manhã, ainda a caminho da escola o Martim afirma: - Mamã, Jesus foi pregado na cruz. Ele ficou com um buraco na mão! - Pois foi querido. - Mas Ele ainda tem o buraco? - Não, Ele agora está no céu e ficou tudo bem. - Ainda bem, estava muito preocupado com Ele. Mas não achas que o podiam ter pendurado pela roupa? Eu acho que eles não precisavam de ter exagerado tanto! Também concordo.

Nos últimos tempos o Martim tem-se tornado num Super Cavalheiro. Ultimamente quando vai tomar banho pergunta-me se lhe posso lavar as calças. - Mas eu não lavo toda a tua roupa? - Sim, mas não custa pedir. Também quer trazer todas as suas mochilas, ajudar com os sacos do supermercado ou segurar a porta para eu e a Nôno passarmos. E quando lhe diso: - Passa tu querido. - Se eu passar não estou a ser cavalheiro! Apesar de eu apreciar muito nunca tinha dito nada. Aliás, ele vive em Marte uma parte significativa do seu dia. É capaz de acordar e não falar durante um tempo, ou entrar num sítio e não dizer bom dia, passarem por ele e nem reparar. Mas repara em outras coisas. Muitas outras coisas que o tornam tão especial.

Temos tentado que todos os dias antes de dormir o Martim leia um bocadinho. O que normalmente acontecia era ele dizer: - Hoje podes ler tu?! ou - Temos mesmo de ler hoje? Entretanto, no seu aniversário, recebeu três livros da coleção Os mini-cinco . São histórias de aventuras, com umas ilustrações bem giras. Está escrito com tamanhos de letras diferentes, umas normais e outras maiores e a negrito. Combinámos que ele lê as grandes e eu as pequenas. E agora, mesmo nos dias em que estamos um bocadinho atrasados, o coméntário é: - Então, hoje não lemos? A Nôno ouve e também gosta. Tentem lá com as vossas crianças.

Ontem à tarde fui à farmácia comprar um creme para o Martim. Aproveitei e comprei um medicamento para mim. Bem sei que não é a minha farmácia habitual, mas vivi uma experiência muito insólita. Passo a contar! - Boa tarde, queria uma embalagem de Gracial. A jovem farmacêutica digita no computador o meu pedido e pergunta num tom de voz que toda a farmácia teria ouvido não fosse estar cheia e barulhenta: - É uma pílula? - Sim. - respondo eu - É a pílula que o seu médico ginecologista lhe recomendou? E várias respostas surgiram prontas na minha cabeça. Pensei em dizer, - Não, é a que me apetece experimentar este mês para ver se sabe bem. Tenho 39 anos, 2 filhos, um marido que deve rezar a todos os Santinhos para eu não me esquecer de tomar tudo certinho, dado que estamos no mesmo escalão de rendimento da família dos Belmiro de Azevedo, os meus pais sabem que eu devo tomar qualquer coisa, mas a farmacêutica ficou escandalizada. Mas respondi: - Sim, foi a que a que o meu

  De que é que serve saber falar quatro línguas e não dizer "bom dia" no elevador?

Todos os dias, a meio da tarde, para ir buscar os miúdos à escola tenho de fazer inversão de marcha numa rotunda e voltar para trás. Junto a essa mesma rotunda há uma paragem de autocarro e um caminho de terra que termina na passadeira de peões. Há muitas semanas vi um carro vermelho parado na paragem e o condutor cá fora. Colocava uma rosa vermelha entre as pedras do passeio. No dia seguinte estava lá, à mesma hora, a rega-la. Outros dias tira a antiga e coloca uma nova. E estes meses depois a rosa continua lá, sempre cuidada e bonita. Chamou-me à atenção pelo insólito. Deixou-me a pensar o que terá acontecido ali? Cada um lida com as suas perdas como pode.

"No eres Google pero tienes todo lo que yo busco."

  A 20 de Janeiro tem uma hora por inteiro, e quem bem souber contar,  hora e meia lhe há-de achar.

Este fim-de-semana foi de estudo. Porque assim tem de ser. Quando disse ao Martim que terminámos, respondeu: - Já sei que esta conversa não vai ficar por aqui.

O Martim tem uma amiga por quem tem muito afecto. Fala disso com naturalidade. Sentam-se ao lado um do outro na carteira. Pediu-me para lhe comprar uma prenda para o dia dos namorados. Mas ontem dizia ao pai: - Ela quer sempre tudo à maneira dela. E quando assim não é, fica logo chateada! O Bruno respondeu: - Estás tramado!

Fomos almoçar a casa dos meus pais e, para não variar, fiquei cheia como um lindo perú de Natal. Ao entrarmos no carro comentei: - Quando chegarmos a casa vou beber um chá! A Nôno retorquiu:  - E eu vou beber um iogurte líquido.

Estive uns dias fora. Pensei que ia ser mais ou menos. Que não ia ser o máximo. Que demoraria a passar. Mas adorei o trabalho, aprendi e diverti-me. Conheci pessoas novas e integraram-me como se sempre tivesse estado lá. Chega a ser confortável estar todo o dia vestida de arbusto. E voltar ganha um novo sabor. Para além das saudades normais, o mais reconfortante foi voltar a ver o Martim e a Nôno a dormir, aconchegar-lhes a roupa e dar aquele beijinho que eles já não sentem, sentindo. Beber um chá sentada no sofá ao lado do Bruno. Casa é casa.

Ontem ao jantar o Martim diz: - Mamã, posso dizer-te uma coisa? Faz sempre este introito, como se não pudesse dizer o que quiser... - Eu ainda não estou preparado para ter filhos!